Chá com livros

«Cheirava a fechado, a gripe e a biscoito, e só as grandes tinas oxidadas, de pernas em forma de garras de esfinge, com a linha de água ausente assinalada por uma orla castanha semelhante a um vinco de boné na testa, se me afiguravam vivas, procurando com as ávidas goelas desmesuradas as tetas de cobre das torneiras, de que desciam, de quando em quando, lágrimas raras como gotas de argirol. Nas cozinhas idênticas ao laboratório de química do liceu, com um calendário das Missões com muitos pretinhos na parede, criadas sem idade, que se chamavam todas Albertina, preparavam canjas sem sal resmungando nos tachos pedaços de terço, destinados a condimentar o arroz branco. Nos esquentadores antiquíssimos, contemporâneos da marmita de Papin, as chamas do gás adquiriam a forma instável de pétalas frágeis, oscilando à beira de um estoiro catastrófico que reduziria a cacos irreconhecíveis a última chávena de Sévres. As janelas não se distinguiam dos quadros: no vidro ou na tela, as mesmas árvores de outubro encolhiam-se como pilas transidas depois de um banho de piscina, a que se enrolavam as serpentinas desbotadas de um Carnaval defunto.»
«Os Cus de Judas» - António Lobo Antunes

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