café final

A vida não me cabe no coração. É como a morte, que não desejo ainda mas que já aceitaria.
Com o meu coração casado, cansado de gostar e de deixar de gostar. Cansado de lembrar e ver, de ver a lembrança à minha frente, e a felicidade atrás de mim, cansado do presente, de ver e de comparar uma com a outra. Cansado de discutir, de não explicar, não perceber, não ser percebido, de perdoar e não ser perdoado.
Cansado de sorrir do meu sorriso, da maneira que a lágrima tem de cair e secar, das portas, das janelas, do ar dentro das casas. Cansado de me animar, de me apanhar do meio do chão, de me meter no carro, de me servir, de me levantar.
Com o meu coração cansado de não saber o que sente, e de descobrir sempre de repente que não sabe. Com o coração cansado de saber. Cansado de mentir. Cansado de esquecer. Mas coração, mesmo assim.
Um dia vou no vaivém dos barcos que vejo da minha janela e atravesso o rio com eles. Um dia ponho os meus olhos num ponto do céu de onde nunca mais possam fugir, tão azul e tão longínquo, que eu nunca mais os possa reaver. Estou cansado de ver o mundo. Estou cansado de viver em casa. Tenho uma vontade pequena de morrer.
Um dia vou para as casas altas onde as coisas não se vêem. Ser como poeira num parapeito num mês sem vento. Estou cansado do que trago. Andorinha aos ombros, os trabalhos que nunca hei-de acabar, a solidão e o azar das minhas certezas, um amor sem solução e sem fim.
Um dia atiro a alma ao ar e serei friamente feliz. Ninguém viu o meu coração. Eu não vi o coração de ninguém. Não me lembro do que aconteceu e do que eu inventei. Mas um dia a minha alma foi contra a tua. Passámos dias inteiros agarrados. Não havia saída, nem dia, nem noite, nem eu, nem tu, nem vida lá fora. Era mais do que amor. O amor não é nada.
O amor desdiz-se. Desmente-se. Só não se desfaz porque não pode. O amor fica. Mas a vontade de amar azeda e a pressa de ser amado vai passando. O amor fica, para nos lembrar da nossa fraqueza, da nossa doçura, da nossa humanidade. Para nos fazer mais pequenos do que pensámos. Para nos proteger da esperança.
O amor não é nada e não passa porque não pode. Nada disso se passou connosco. Era mais do que amor. Numa hora de amor envelhecemos 20 anos. Era mais perigoso, mais bonito, mais triste do que o amor. Era a nossa vida a passar.
A vida é a única coisa que temos. Nada temos para a acompanhar.
O preço de estar contente foi sempre tão alto e eu paguei-o sempre com esta dívida para comigo mesmo que se foi acumulando em mim até rebentar. Desde o dia pequenino em que escolhi o primeiro sorriso, em que diverti o curso da primeira lágrima. Era só água na minha cara, mas eu aprendi a torna-la em ácido no meu coração.
No meu coração cansado, que eu queria desperdiçar contigo.
O meu coração dá-te como morta, mas tenho a tua imagem, o teu rosto deitado sobre o meu como se dormisses sobre mim. Guardo-a contra o tempo e contigo, para levar no momento em que deixe de viver. Nós somos tão brancos. Com a tua escuridão e a minha cegueira, nós somos tão brancos e tão parecidos que me custa abrir os olhos e não te ver.
Morre a vontade, o dia, o curso da vida, o sopro, a melodia repetitiva que sustém, sem razão aparente, a sorte e a solidão de não estar morto.

Morre a alma, morrem as mãos. Morre tudo, menos o amor que ainda nem se quer nasceu.

O Cemitério de Raparigas de Miguel Esteves Cardoso (claro).

Sem comentários:

Enviar um comentário