Café do Adeus


Figura e nunca figurante. Num jornal, que não sei agora precisar, era assim que o descreviam. Quase todos sabiam quem ele era mas alguns, como eu, não sabiam que tinha nome. Mas lá por causa disso, não quer dizer que a relação fosse distante. Meia-Lisboa o conhecia bem, enquanto a outra metade o desejava conhecer. Eu, pelo menos, não cumprimento toda a gente que por mim passa na rua. Portanto, figura e não figurante, porque toda a gente sabia que ele lá estava.
Maluquinho era. Mas da maluquice dele, tomara a todos nós padecer um dia. De família abastada, tinha casa própria e nunca precisou de entrar numa cozinha para preparar uma única refeição. Todos os domingos, às oito e qualquer coisa da noite, ia ao El corte inglés - onde os filmes são mais caros - com dois amigos ver cinema. Amigos bons que, gentilmente, ajudavam a transpôr as críticas, que lhe aprazia fazer aos filmes que via, para um blogue. Os mesmos amigos liam-lhe, depois, os comentários feitos ao que escrevera, no domingo seguinte.
Eu ouvi de tudo: "Ai que é o velório mais lindo que eu já vi"; "Mas afinal quem era o homem?" "Sou só eu que acho isto tudo uma parvoíce?". Não era nenhum mendigo. Por isso, não estava em causa nenhum falso moralismo de quem sai para a rua com o síndrome do ai-os-mendigos-e-os-zé-ninguém-que-todos-os-dias-morrem-na-rua. Não é nada disso.
A verdade é que levantei o rabo do sofá e fui. Não sabia se lá iam estar duas pessoas ou um milhão delas. Ninguém sabia muito bem o que lá se ia passar às dez da noite daquele dia. A verdade é que quase instintivamente, as pessoas foram tomando os seus lugares, dos dois lados da rua, na curva do Saldanha. As buzinas dos carros estimulavam quem acenava, num efeito Pavloviano, e os mais entusiastas, quando o sinal fechava, até gritavam para dentro dos carros: "É por causa do senhor do Adeus!"
Dizia, da altivez de quem nunca acenava primeiro e só respondia a quem dava por ele, que não era senhor do adeus, mas senhor do olá. Agora terá forçosamente de ser adeus, porque ninguém o vai substituir. Quantos de nós estariam dispostos a ir para o meio de Lisboa afugentar a solidão - a própria e a dos outros - fazendo disso carreira a tempo-inteiro?

Sem comentários:

Enviar um comentário