café

Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono.

Saudade, Mia Couto

o chá pina

Vê se há mensagens
no gravador de chamadas;
rega as roseiras;
as chaves estão
na mesa do telefone;
traz o meu
caderno de apontamentos
(o de folhas
sem linhas, as linhas distraem-me).
Não digas nada
a ninguém,
o tempo, agora,
é de poucas palavras, 
e de ainda menos sentido.
Embora eu, pelos vistos,
não tenho razão de queixa.
Senhor, permite que algo permaneça,
alguma palavra ou lembrança,
que alguma coisa possa ter sido
de outra maneira,
não digo a morte, nem a vida, 
mas alguma coisa mais insubstancial.
Se não para que me deste os substantivos e os verbos,
o medo e a esperança,
a urze e o salgueiro,
os meus heróis e os meus livros?
Agora o meu coração
está cheio de passos
e de vozes falando baixo,
de nomes passados
lembrando-me onde
as minhas palavras não chegam
nem a minha vida
Nem provavelmente o Adalat ou Nitromint.

Pina, in Cuidados Intensivos.

Cappucino

Ah! As coisas incríveis que eu te contava
assim misturadas com luas e estrelas
e a voz vagarosa como o andar da noite!

As coisas incriveis que eu te contava e me deixavam hirto de surpresa
na solidao da vila quieta!
Que eu vinha alta noite
Como quem vem de longe
E sabe o segredo dos grandes silencios
-os meus braços no jeito de pedir
e os meus olhos pedindo
o corpo que tu mal debruçavas da varanda!...

(As coisas incriveis eu so as contava
depois de as ouvir do teu corpo, da noite e da estrela, por cima dos teus cabelos.
Aquela estrela que parecia de proposito para enfeitar os teus cabelos quando eu ia namorar-te)

Mas tudo isso, que era tudo para nós,
não era nada da vida!...
Da vida é isto que a vida faz.
Ah! Sim, é isto que s vida faz!
isto de tu seres a esposa seria e triste
De um terceiro oficial das finanças da camara municipal!

Romance do terceiro oficial das finanças, Manuel da Fonseca

chá de punho cerrado


O ódio a Sócrates por Daniel Oliveira. 

café, café, café


Porque é que abandonou o jornalismo?
Abandonei por opção. Lembro-me do momento. Estava numa inauguração de uma autoestrada no Alentejo, atrás do Jorge Coelho. Olhei à minha volta. "O que é que estou aqui a fazer? O que é que isto me interessa?". Decidi que não ia passar a minha vida a fazer aquilo. Preferia servir cafés. Pelo menos, não exigia nada intelectualmente de mim. (Ainda uso muitos neurónios para coisas que não têm importância nenhuma. Mas menos. É a vida). (...)

Daniel Oliveira responde às perguntas de Anabela Mota Ribeiro, aqui.

chá rosa

não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

não posso adiar o coração.

"Não posso adiar o coração", António Ramos Rosa (descobrir coisas bonitas em dias tristes)